quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

domingo, 21 de novembro de 2010

LA DOLCE ROMA



A lenda da fundação da cidade edificada às margens do rio Tibre é que ela se deu no Monte Palatino, em 21 de abril de 753 AC, por Rômulo, o irmão gêmeo de Remo, ambos salvos por uma loba que os amamentou.


Um coração peregrino – e não sonhos, como no caso de Freud – levou-me à cidade eterna. Reinventava a luz do amanhecer com o poder das miragens*, para logo descobrir que ela existe tal qual imaginei-a. Tanto havia lido, plantado dados, retido informações vindas das mais diversas fontes, afinal chegara a época da colheita, tempo de unir a realidade ao mito. Bem que tentei fazer poesia do instante, mas Roma não coube nos meus versos. Então, na volta, porque toda festa um dia termina, abrindo uma clareira na memória mapeei o périplo percorrido, ora dando relevância aos lugares visitados, ora aos afetos despertados. A relação entre uns e outros serviu-me de bússola e transbordou no texto que segue.

Sombrias expectativas que aludiam a traços de nossa maldita herança latina corporificaram-se antes mesmo do tumultuado desembarque no Aeroporto Leonardo da Vinci, mais conhecido como Fiumicino. A viagem no airbus lotado de cidadãos regressando à pátria revelara uma noite carente de bom atendimento, silêncio e do conseqüente descanso de que se necessita para encarar a nova jornada que se avizinhava. Porém, mal pego o táxi para o hotel, os inúteis laços que me uniam àquela experiência negativa desfazem-se por completo: por trás de um trânsito caótico pontilhado de motos, lambretas e scooters, a beleza de um passado narrado através de um bailado de ruínas e relíquias atravessa-me as pupilas. Malas no quarto, corro para a conquista dessa que foi durante séculos a grande civilização dominante do Ocidente.

Vislumbro, de surpresa em surpresa, a poeira alada que resiste a escorrer da ampulheta. Ah, a infinitude que brilha no COLISEU (patrimônio da humanidade, o estádio em cuja arena cristãos eram jogados aos leões), no ARCO DE CONSTANTINO (erguido com a finalidade de celebrar vitórias), no FÓRUM ROMANO (permanente sítio arqueológico), no MONTE PALATINO (uma das sete colinas sobre as quais Roma foi edificada), no CIRCO MAXIMUS (onde aconteciam as corridas de bigas), no CAPITOLINO (sede da prefeitura durante séculos, com a escadaria projetada por Michelangelo), na DOMUS AUREA (a casa que o imperador Nero mandou construir depois do incêndio de Roma, sinônimo de riqueza, opulência e luxo, com fachadas inteiras de ouro), e no PANTHEON, a mais antiga obra, quase intacta, projetada para ser um templo dedicado aos doze deuses do Olimpo. Ali cheguei ao cair da tarde. Avançando no piso de mármore decorado, gotas de chuva que entravam pelo óculo da abóbada (um orifício no topo) misturaram-se às lágrimas em meu rosto, fazendo com que me afogasse numa alegria atroz.

Outros tesouros foram encontrados. A GALLERIA BORGHESE, no parque Villa Borghese, abriga uma excelente coleção de trabalhos de Raphael, Ticiano, Botticelli, Rubens e Caravaggio. FONTANA DI TREVI, por mais que já tenha sido vista em fotos e filmagens, é arrebatadora! PALLAZO DORIA PAMPHILI, na Piazza Navona, um dos mais imponentes edifícios, propriedade e sede da Embaixada do Brasil. BASÍLICA DE SANTA MARIA MAGGIORE: mosaicos que datam do séc V impressionam. CAMPO DEI FIORI. Na praça há uma estátua em homenagem ao filósofo Giordano Bruno, queimado vivo em 1600 por ter desafiado a Inquisição ao dizer, como Galileu, que a Terra é que girava em torno do sol, e não o contrário. TERMAS DE CARACALLA (os banhos públicos eram populares, na antiguidade). Nos verões, palco de espetáculos de ópera e balé ao ar livre - quem não se lembra do primeiro concerto dos três tenores (Plácido Domingo, José Carreras e Luciano Pavarotti), em 1990, transmitido pela tv? Até o monumento kitsch, O VITORIANO, na piazza Venezia, em cujo centro há uma enorme estátua eqüestre do rei, compensou pela bela vista que se tem lá de cima. E para quem, como eu, não é indiferente à estética de objetos contemporâneos, Via Nationale, Del Corso e Condotti, cheias de lojas de grife, eventualmente com vendettas promotionales (liquidações).

Reservei um dia para a ida ao VATICANO. A PIAZZA DE SÃO PEDRO (vigiada por exóticos guardas com trajes suíços) e a imensa BASÍLICA DE SÃO PEDRO (com destaque para a Pietà, de Michelangelo, logo na entrada, à direita) são atrações à parte. Sete quilômetros de corredores com tapeçarias, afrescos e pinturas compõem o complexo de museus, tendo seu ápice na CAPELA SISTINA. Cada uma das cenas do teto (Michelangelo again, pintado entre 1508 e 1512) mostra um dia da criação, segundo o Gênesis. A que retrata o Juízo Final inspira reverência. Apenas aqui os romanos (e demais turistas) se calam: é terminantemente proibido conversar. Tonta entre tons e silhuetas, gostaria de tomar um pouco de ar nos magníficos jardins que vejo das janelas, contudo o acesso ao público é vetado, só em excursão com guia e marcação prévia. Por fim, a audiência com o papa (João Paulo II): fiéis de todas as partes do mundo, saudados em suas línguas de origem, um acontecimento!

Com a alma sendo sempre abastecida, não descuidei também, nem um dia sequer, do corpo, sem o qual aquela dá adeus à vida, ao menos terrena. A culinária italiana é uma das mais saborosas do mundo. Aproveitei paninis, pizzas, insalatas, pastas, risotos, sem esquecer dos gelatos, expressos e capuccinos em seus ristorantes, tavernas e trattorias. Uma refeição típica constitui-se de primo piatto (em geral, massa (oriunda da China, trazida por Marco Pólo, no final da Idade Média)), secondo piatto (carne, peixe ou frango), contorno (acompanhamento) e dolce, embora um menu del giorno, menos farto, mais econômico, esteja presente em quase todos os lugares. Há uma diferença sensível entre comer em pé, no bar (alla banca) e na mesa (alla tavolla): pelo menos o dobro do preço. Considerando-se a demora no atendimento do serviço feito por garçom, na hora do almoço pode ser importante lembrar-se do ditado Roma não foi feita num dia, portanto não há tempo a perder para quem quer conhecê-la. But (para tudo há uma exceção), em Roma, como os romanos: ao menos uma vez, compre seus comes e bebes e vá degustá-los com calma na escadaria da PIAZZA DE SPAGNE (um projeto francês assim batizado por sua proximidade com a Embaixada da Espanha), mas antes se prepare para uma verdadeira maratona, já que são poucos os supermercados é preciso passar na panetteria, na salumeria, lateria, pasticeria, gelatteria... A experiência cultural gastronômica vale a pena, garanto.

*Bruno Tolentino, em A Imitação do Amanhecer.

Ana Guimarães

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

NOVA PUBLICAÇÃO NO CRONÓPIOS


O portal Cronópios http://www.cronopios.com.br/site/default.asp acaba de publicar SONHO MEU e JUSTINE http://www.cronopios.com.br/site/prosa.asp?id=4808, ambos de minha autoria.
Confiram.
Beijos

domingo, 7 de novembro de 2010

O MEU, O SEU, O NOSSO GUIMARÃES

Tudo é recado. Coisas comuns comunicam, ao entendedor, revelam, dão aviso.
(Ave palavra)

Muita gente me pergunta, brincando ou a sério, se o meu sobrenome tem a ver com o do João, o Rosa. Quem dera! Nenhum parentesco, ele é apenas o meu escritor brasileiro preferido. Essa preferência se consolidou – levando-me a, após ler e reler sua obra, começar a estudá-la com os especialistas Ana Luiza Costa e Leonardo Vieira – quando li numa entrevista concedida a Günther Lorenz, a revelação de algo de que suspeitava: da “importância monstruosa, espantosa de Freud em sua pluma”. Bem que eu já observara o estranhamento que sua escrita provoca, uma certa equivocação que vem a ser o cerne da práxis analítica. O diálogo entre literatura e psicanálise que daí decorre (a dupla ressonância de uma área na outra) é objeto de teses e mais teses em todo o mundo, responsáveis pelo relançamento de questões nunca suficientemente definidas, relativas ao sujeito, sua fundação, estrutura e escrita. Ele é tão estudado porque “nele procurando, acha-se - sempre é assunto para novas interpretações, inclusive por divergir de si mesmo”, disse Cláudio Willer.

Barroco por excelência, se cultivava o excesso, entretanto, era por absoluta necessidade de maior amplitude lingüística, tendo trazido para o seu texto a riqueza de expressões populares sem ser considerado regionalista por isso. Em 1946 ele assim se explica: “A língua portuguesa está empobrecida, rígida, estratificada, falta sentido e beleza a ela. É preciso lhe dar plasticidade, refundi-la no tacho, distendê-la, trabalhá-la, dar-lhe músculos”.

Mais do que determinar um estilo e influenciar seus leitores credito ao autor a abertura de possibilidades estéticas literárias infindáveis, a liberdade para brincar com a estrutura da frase, criando uma outra articulação, sem por isso torná-la ininteligível. Tal insubmissão aos cânones estabelecidos, com suas recriações vocabulares e sintáticas, faz lembrar Joyce (meu escritor estrangeiro favorito): o mesmo limpar as palavras do senso comum, com prazer e imenso savoir-faire, o mesmo encarar a linguagem como a principal personagem (o enredo ficando sempre em segundo plano), a mesma maneira de contornar o Real, domesticando-o via neologismos. Seu método de trabalho era oposto, por exemplo, ao do Houaiss ao traduzir Ulisses, abrasileirando-o. Ao contrário, Guimarães trazia expressões idiomáticas de outras línguas para o português, e dizia que o tradutor devia mesmo “violentar a língua de chegada”.

Ao seu “As pessoas não morrem, elas ficam encantadas” respondo que encantados ficamos nós, e bem vivos, com a errância de Riobaldo em sua travessia pelo Grande Sertão: Veredas. Este é o romance da dúvida por excelência, onde as megeras cartesianas do homem dogmático são subvertidas (sinto, logo existo) e combatidas pelos freqüentes questionamentos que não findam nem na última página, como se pode constatar com o símbolo matemático de infinito que a ilustra. Inclui todo tipo de ambigüidade, inclusive a que diz respeito ao gênero (Reinaldo/Diadorim). É visível sua tentativa de apreender o não-apreensível, o que não tem contornos definidos, o chiaroscuro, o que está em eterno movimento, em construção, o ainda não nomeado: por definição, emblemático do processo analítico. Dar voz ao Outro da gente: o que não fala, o que está no limiar entre o humano e o animal, o que não tem autoridade para se expressar: o sertão, a criança, o índio, os seres da natureza, o louco. Seus arquivos revelam cadernos/cadernetas/diários de viagem, documentos inter-relacionados e verdadeiras sentinelas da memória com que ia registrando o que via para depois então escrever, apontamentos esses que evidenciam seu permanente diálogo com o mundo.

Nós que ousamos trilhar esse caminho duro e penoso (se ele que era ele guardava um texto recém-escrito por uma semana, um mês, depois o desengavetava e falava: “vamos ver por que esse conto está ruim”, e tome de corrigir!), porém inevitável, pois não sabemos como recusá-lo (falava do horror a escrever, mas não ter como escapar disso: “Um livro tem que ser escrito senão vira um trombo na veia”), assim que terminamos de lê-lo ficamos como “chuva em nuvens, dependurados no ar, para cair”, prontos para desabar nossas letras – ainda que miúdas, verdadeiras garoinhas comparadas às rosianas – na primeira página em branco que encontramos pela frente. Torcendo para ter, ao menos, um pouco do estômago de ostra que lhe atribuía Haroldo de Campos, capaz de, após tudo fagocitar, um dia produzir da irritação, da adversidade, alguma pérola, ainda que barroca.

Ana Guimarães

domingo, 31 de outubro de 2010

PARA QUE SERVE A POESIA?

A poesia é um verdadeiro alento nas horas difíceis. Tapa-buracos do real, quanto mais o sentido escapa, mais ela emerge. Na contramão do sensato, aponta o horizonte do impossível, denuncia a tentativa de sacrifício do sonho, de massacre da ilusão.
Dá força ao imaginário, até mesmo ao marginal, e serpenteia como água na infiltração, disseminando-se pelas frestas, pelos descaminhos, driblando barreiras, minando resistências, fazendo suas próprias rotas, não convencionais, subversivas.
Ensina a suportar a impotência diante do inominável. A acessar, por ondas mnêmicas, o indestrutível museu emocional que portamos. A abordar, como significa semanticamente: pelas bordas, a dor. A aproximar, por linhas de fuga, o horror.
A abandonar os remos e deixar o barco à deriva. Ficar como cata-vento, à mercê do vento. Fantasiar que estamos nadando no mar quando só estamos afogados em nossas lágrimas salgadas (grande Carroll!). Falar com bichos e pedras sem parecer louco.
A se jogar no buraco, por mais escuro e fundo que seja, Alice na toca do coelho, sem se questionar como será para voltar. E também, depois dessa queda, não ter mais medo de cair. Até porque quando se cai nada mais resta a fazer senão falar, simbolizar, metaforizar. Mesmo que com dificuldade, como reza a lenda sobre Joyce: o dia inteiro trabalhando para encontrar as palavras, só não sabia, ao final, ainda, como arranjá-las na frase.
A nos interrogarmos depois que escrevemos: será que foi o mundo que mudou ou mudei eu? Quem sou esse que escreve? Esse estranhamento.
Pois a poesia não responde, pergunta. Seria ela um corredor comprido, iluminado por uma fileira de lâmpadas? Ou a luz das lâmpadas iluminando esse corredor? Varia, depende do ângulo. Ela é a chave que não abre nenhuma porta específica, deixando a você a descoberta das saídas possíveis. Suas, particulares, subjetivas, únicas.
Semelhante aos pés distantes da Alice, pode não nos obedecer e nos levar para onde não queremos ir. Feito andar na areia da praia, deixando pegadas que o vento logo desmancha: à medida que caminhamos, mais criamos marcas e as apagamos.
Arquiteta da ponte entre as margens de um vazio e outro, tantas vezes projetada, jamais construída, tem o dom de fazer extraordinário do comum. Lápis de cor que colore o preto e branco da história, desenhando montanhas onde é só planície estéril, encantando o desencanto do mundo. O pintor é ela, somos – com muita honra e humildade – apenas seus pincéis.

Ana Guimarães

domingo, 24 de outubro de 2010

PATCHWWORK




Um passo para frente
dois passos para trás
assim me (des)construo
tecendo e destecendo
a trama de minha vida
atribuindo-lhe novos significados
matizes
texturas
Penélope de mim mesma

Sigo veredas
que não levam a lugar algum
utilizo métodos
que já se mostraram improdutivos
aro terras inférteis
rego sementes que não germinam
ouço profecias (utopias)
de oráculos cegos
acredito no canto das sereias

Nada em vão, no entanto
(igual a Sócrates,
aprendendo uma ária com flauta
enquanto lhe preparavam a cicuta
Para que?
Aprendê-la antes de morrer
só isso)

Estendo a mão para um vilão
dou nova chance
ao traidor amigo
feito uma criança
que de nada desconfia
me dôo para amores
que não se concretizam

Explodo em lágrimas
após cada – previsível – perda
quando não, resignada, sorrio
mas jamais me esqueço
de retornar ao caminho
porque a verdadeira viagem
nunca é de ida
e sim de volta
como a de Ulisses

Ana Guimarães

Poema já publicado no Jornal da Poesia: http://www.revista.agulha.nom.br/anaguimaraes1.html#patchwork
e agora também em Sal da Terra Luz do Mundo, confiram: http://saldaterraluzdomundo.net/literatura_poe_patchwork.html



quarta-feira, 13 de outubro de 2010

O MEDO DA LUZ


O que faz andar o barco não é a vela enfunada, mas o vento que não se vê. (Platão)


Em um romance de Ítalo Calvino, Il Cavaliere inesistente, Agilulfo, uma espécie de Don Quixote, para se acalmar e não se dissolver na incerteza e no absurdo daquela época das Cruzadas dedica-se, compulsivamente, a contar objetos e a resolver problemas aritméticos, ao alvorecer. Cada um se arranja como pode. Os sintomas cumprem um papel metafórico, resta a interpretação, ou seja, a aproximação da verdade.

O passado influencia o futuro, a ponto de sobredeterminá-lo? Interessaria a alguém conseguir exterminar lembranças que permanecem intactas, com vívidas impressões sempre assombrando? Repetindo um auto-exílio, Eva parte para uma nova cidade em busca de recomeço, deixando para trás a família dividida e poucos vínculos que a distância ou a morte ainda não devastaram. Diz querer escapar de ultrajantes abandono e solidão, zerar sua vida que terá início ali e agora. Reconstruir a história, apagar da memória traições, ingratidões, a dor e a doença delas derivadas. Jogar fora o retrato e a moldura (o geográfico) que parecem aprisionar trágicas recordações.

Tal postura aliada ao hábito de idealizar relacionamentos a seqüestrará, de novo, do presente? Pois já fora assim há uma década atrás, terá esquecido? Na ocasião, fugiu de urubus que rondavam a carniça na qual se tornara logo após a separação pedida pelo marido depois de décadas de lutas, crises, mas também de cumplicidade, conquistas e filhos. Voltou da capital (local em que só fizera conhecidos, todos atrelados a circunstâncias profissionais, ligados pelo luto de seus lugares de origem) para o Rio, berço natal onde continuavam a residir parentes e velhas amigas de infância que de certo a apoiariam.

Todos esperaram que o centro espírita que resolveu freqüentar e o psiquiatra ali indicado – não os remédios com os quais passou a se encharcar – iluminassem a ponta do sentimento que a perturba. Que conseguisse, além de enxugar o vazamento, descobrir a fenda por onde a coisa passa. Escavando, fizesse o caminho contrário, criativa travessia que sempre abre janelas para outros espaços, contraditórios, contudo arejados porque construídos por palavras. Que aceitasse, enfim, como falava Cioran, sofrer as conseqüências de ser ferida pela existência. Mas ela preferiu, outra vez, a saída de emergência, a única vislumbrada no desespero: o aeroporto.

Não nos livraremos de nossos destinos e da visão de mundo congelada, pétrea, intocável que (se a) carregamos nem se mudarmos de identidade, quanto mais de endereço. E porque a vida é movimento, a inútil censura promoverá, em algum momento, o retorno do recalcado. O que parece se desconhecer é que o obstáculo para suportar o inevitável mal estar na civilização não está no quadro que cada um mostra, mas no que subtrai. Muito fica de fora, talvez o principal. A parte ignorada é infinitamente maior do que a sabida, uma zona de sombra, fronteira com o indizível.

Não são os outros que a magoaram, que a decepcionaram os responsáveis pela depressão que a consome. O que contamos de nós imputando a terceiros nosso estado, mesmo revelação fiel dos fatos, subverte a realidade. Ao invés de capturar o real, o deforma, e quase ninguém tem consciência da fraude. Repetimos ad nausean: “sou/estou assim porque minha mãe... porque meu marido... meu filho... meu chefe... o governo do meu país...”, sem conseguir focar sobre o que fizemos com o que nos fizeram. Só a partir dessa pergunta poderemos desenhar, escrever, esculpir, pintar um renascimento. Seja lá onde for.

Podemos facilmente perdoar uma criança que tem medo do escuro; a real tragédia da vida é quando os homens têm medo da luz. (Platão)

Ana Guimarães

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Tinta de escrever - para Ana Guimarães (de Rose Marinho Prado)

 
desenho de Rose Marinho Prado

Para a Ana Guimarães

Nesse tempo, venho andando e caindo, feito todos. Numa fragilidade que confesso me apavora. Em especial, porque, ou melhor, por causa disso que eu crio - que você chama de arte.

Tão confuso conciliar cor, linha, linha aqui ou lá. E essa instância de ser que nem sempre fala alto, ou tão alto quanto eu gostaria. Sou tímida em excesso e isso é que faz contraste, confunde a mim e aos que me conhecem. Porque, os de perto, se assustam com o tanto de trapalhadas. Quem sou eu afinal?

Não é que eu deixe de arrumar o quarto - ou quintal - para rabiscar um desenho, aqui ou lá? Não é que tanto esqueço de mim, de cuidar de mim, dos medos, anseios? Alguns amigos dizem: "Chega!". E certos estão.

Porque, ainda que eu negue - e antes negava mais, acho que se lembra assim como eu, o tanto que, de longe, você me incentivou a desenhar... - é a caçada dos meus traços, a parte de mim que me importa. De mim, dos desenhos, das palavras. É custoso, mas sei que é aí que habito.

Já chutei baldes de tinta, quebrei gizes, esses com que faço os desenhos de que tanto você gosta! E acha bonitos!

E a força de que preciso, para, como professora de redação, perseguir a reta, a origem, o fim? E cumprir o tempo certo então?

(Se lhe digo a cegueira é constante? Intuo as ladeiras, às vezes, erro. De que cegueira dizer? Falta palavra. É que há um sol escuro, mas sol. Ele aposta na vida!).

Os sentimentos se enrolam, puxo daqui, de lá. E vou...E os desenhos - só agora - começam a ganhar viço, determinação. Nem sei bem se um dia junto alguns e crio uma história. Não depende de mim, mas, de alguma coisa frágil que me habita. Mas que é visível, consigo enxergar. E, justo, por não esperar mais nada e sim, fazer - por causa da força feito essa que você me transmite - é que tenho conseguido constância e aprimoramento, senão, nos traços, ao menos no bailado dos riscos para que eu consiga expressar o que nem sei.

Sim, concordo com você. Não fosse a internet, meus desenhos não seriam conhecidos por tantas pessoas! É possível que eu nem desenhasse mais. Ou escrevesse. Porque os que vivem perto nem sempre dizem: "Faça!"Eles se aborrecem com o fato de eu ser inconstante, desorganizada...e assim vai...

Descobri que desenhava aos 22 anos. E corri nessa direção. Depois vieram fatos. Até sair das armadilhas! A vida pode jogar a gente longe da gente! Pra nunca mais.

Eu tenho sorte. Em especial, de ter uma amiga feito você. Constante, direta, verdadeira. E forte! Essa sua força! Ah!

Obrigada, agradeço o Feliz Aniversário, dito assim desse jeito tão sensível. Obrigada.

Rose Marinho Prado


(Resposta a esse recado que lhe deixei no orkut ontem: "Dir-te-ei hoje - agora - e não (só) no dia do seu aniversário - as tais palavras diferentes que desejas ouvir, Rose: comemore o ser especial que você é, e agradeça, tanto quanto nós somos gratos, o fato de pertencer a uma época em que sua arte pode ser conhecida por uma enormidade de pessoas através da internet."20:53 quinta-feira, 23 de setembro de 2010)

Link para seus desenhos e textos: http://roseeseusamigos.blogspot.com/

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

PUBLICAÇÃO NO PORTAL CRONÓPIOS

Balas perdidas

(POESIA) ... Na rede estou: sou caça das palavras /que me caem em cima, matando, de vez, a coisa /passiva, pasto, passagem /garrafa ao mar, missiva /não fujo, não me escondo, deixo-me atravessar ... Ana Guimarães

http://www.cronopios.com.br/site/poesia.asp?id=4732

Leiam, comentem.

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

A MINHA MÃE E A DA ADÉLIA



Minha mãe achava estudo a coisa mais fina do mundo. Não é. A coisa mais fina do mundo é o sentimento. (Adélia Prado)


Minha mãe achava sentimento a coisa mais fina do mundo.
Não é. A coisa mais fina do mundo é o estudo do sentimento.
Foi o que fiz, formalmente. É o que faço, no dia a dia.
Ficar entregue ao sentimento é ser barco à deriva.
Às vezes ele ilude, engana, até cega.
Sentimento sem razão, sem freio, sem respiração é nada.
O sentir sem se deixar parar é, existencialmente, um falso sentir.
Palavras - reflexões - urgem.
Elas orientam o sentimento, transformam-no, mudam sinais.
In-formam (gravam formas) na matéria bruta.
Ordenam o que antes era o caos.
Quem fala/escreve luta, não se entrega.
E mesmo um texto (quer dizer, um tecido) feito de linhas (fios)
é sempre inacabado: precisa de um receptor para ter significado.

Ana Guimarães

domingo, 25 de julho de 2010

NÃO HÁ BANDA

Cada morte que canta
é um espanto
como se não soubéssemos
o que nos espera
essa “colheita comum
do capinar sozinho”

Fáustico é o esforço
para enfrentar os próprios crespos
organizar o caos
atravessar o inferno
exorcizar o diabo (o outro)
no meio do redemoinho

Tudo para evitar
o lugar
cheio de noite e silêncio
Para esquecer
ou tentar adiar
a hora derradeira

Mas o nada
independente do pacto
sempre chega

* referência a uma citação recorrente no filme de David Lynch, Cidade dos Sonhos

Ana Guimarães

terça-feira, 22 de junho de 2010

ADIÇÃO




Todos os excessos são condenáveis, até mesmo os da abstinência (Voltaire)

Seus companheiros
de ilusão
quem são?

Com o que combate
o horror à solidão
e tenta esquecer
que não tem mais sonhos?

Como lidar com o real
cada vez mais
avassalador?

Ao mal estar
você soma
a dependência
a algum paraíso artificial?

Crê precisar
de subterfúgios
para criar?

Só assim
as portas da percepção vão se abrir
céu e inferno
se intercambiar?

O que a literatura pode
(meio ou fim)
significar?

De que modo atravessa
o crespo do seu sertão
esse deserto da alma:
o liso do Sussuarão?

Se embriaga
se entorpece
quando não consegue
dizer não?

Que veredas percorre
em busca da fantasia
de completude?

Diga-me onde te abasteces
e dir-te-ei
quem não és

Na boca de fumo?
Num Mc da vida? (a droga do junkie food)
Na farmácia?
No botequim?

O que o ajuda a encarar
a falta, o excesso
o lusco-fusco da alma
seu Diadorim?

Tal linha de fuga
que prazeres
proporciona?

Estados alterados lhe dão (ou tiram)
vontade de que?
Que tonalidades o mundo perde
ou adquire?

E depois, o que suas sábias vísceras
denunciam?
Espasmos de culpa ou remorso
revém?


Ana Guimarães

sábado, 17 de abril de 2010

LOST (NOT ONLY) IN TRANSLATION


Minha descoberta de Joyce – o primeiro approach – foi sem interlocutor algum para dividir o impacto que seu texto me causava: quem estaria lendo Ulisses aos dezessete? Paixão à primeira vista. Totalmente rendida aos encantos, à mágica, à amplitude de suas letras, à proliferação de sentidos que o aparente caos de imagens e idéias provocava. Aos efeitos de atos internos, como Paul Valéry preconizava em A jovem Parca, para designar o que uma obra de arte é capaz de promover. Não parei mais. Joyce me comprou: mais de uma década depois começava a reler todos os seus livros, sempre traduzidos, mesmo advertida de que tradutore, traditore. Não posso me queixar, o que encontrei foi sempre mais criação, transliteração. Sou grata aos irmãos Campos e a Antonio Houaiss tão dignas empreitadas. E recentemente, a Bernardina da Silveira Pinheiro.
Há mais ou menos cinco anos dei início à nova rodada, sob a batuta de Lacan, apoiada na partitura de seu seminário O Sintoma. Balizas que poderiam restringir, na verdade ampliaram minha escuta, como se um novo Joyce se descortinasse aos meus – até então – ingênuos olhos e ouvidos. Conhecê-lo por isso? Não. Entendê-lo? Menos ainda. Como bem disse Derrida: Quem pode se vangloriar de já ter “lido” Joyce? ... Porque há muitos livros que acabamos de lê-los desde a primeira página: programa conhecido. Lendo-o sempre sim, no gerúndio, como tempo de verbo: genuíno work in progress. Sua leitura, tanto quanto um processo analítico, é interminável.
Ao mesmo tempo em que pretendeu limpar o vocabulário do senso comum, da sujeira da funcionalidade, Joyce também quis capturar o incapturável, numa ânsia pelo fonema que tudo abarcasse, o maior significado possível, uma utopia lingüística de nomear quase que termo a termo, totalmente, o mundo. Sua obsessão: a busca da homologia entre a palavra e a coisa. Quanto mais à vontade ficava em sua produção literária (o auge disso foi Finnegans) mais demonstrava pretender uma ampliação da língua: trabalhá-la, distendê-la, enriquecê-la, reescrevê-la, apropriando-se de territórios antes exclusivamente do Real, nomeando-os, trazendo expressões novas, engavetadas, inventando-as acima de tudo quando não tinha qual designasse o que pretendia. Penetra com vigor em sua tessitura e aí brinca, sem pudor, com maestria e gozo.
Escrevo malgré moi, parece dizer o escritor. Não escolho, sou escolhido. Embora deixando-se perfurar por epifanias, ao invés de sujeitar-se às palavras impostas (mesmo atormentado por elas) teve savoir-faire de artífice para trocar de lugar, inverter as posições e quebrá-las, desmontá-las. Liberdade essa, de ir e vir, um enfrentamento do paradoxo que roça a loucura. Joyce soube, como ninguém, suportar a dor do parto: dos escritos e de si mesmo, enquanto sujeito. Criando, ele se constituiu. O que lhe parecia estanque, separado, disjunto é suturado via autoria, via escritura.
Tudo quanto é reto mente, a verdade é sinuosa, sabemos. Quanto mais confuso, quanto mais turvo, mais chance de verdadeiro. Quanto mais incerto, mais significativo. Nossas palavras que tropeçam são palavras que confessam. Assim ele nos dá uma mostração exemplar da estrutura do parlêtre, a divisão do sujeito: sou e não sou, sou os contrários, os diferentes ao mesmo tempo, numa fala nem sempre coerente, nem sempre unívoca, mas autêntica, et pour cause. Ambígua, como a própria vida. Fracassa a compreensão: é pra ser lido e não, necessariamente, entendido. Rasura as palavras, desfaz o sentido (ou finge desfazê-lo) para que cada leitor o reconstrua a seu modo, particular, único, diferente, daí se dizer que a obra de arte funciona como analista: provoca um estranhamento em quem dela desfruta, um descentramento, uma equivocação.
Lost in translation ficamos, mas não mais do que quem o lê no original, sei. Não mais do que o próprio Joyce estava. Não foi Sabato quem disse que a literatura – como a psicanálise – é um viés no qual a gente se perde pra se encontrar? Não serve para explicar, edificar, moralizar, muito menos para acomodar, tranqüilizar, adormecer tal como uma igreja ou partido político. Ao contrário, para despertar, sacudir da anestesia de um viver amortecido e da inconsciência do sono do cotidiano. Esse foi o bê-á-bá que Joyce nos ensinou. Silabação que estudamos até hoje, como ele queria. Minha homenagem em forma de poema:

O BÊ-A-BÁ DE JOYCE

Todos os idiomas da dúvida são meus
mesmo com tradução
mistério e enigma fazem parte
do meu dicionário

o verbo oceânico persigo
conjugar o inefável, o intangível,
o paradoxal: não elidir os contrários

se minha dicção é múltipla
almejo uma sintaxe própria
enquanto isso, soletro a ponte
entre o efêmero e o estável

coar a nata do sentido para seu deleite
o poema – o leite no copo –
esperando pela interpretação
os buracos no texto, como borra de café,
o seu deciframento
a arquitetura da ficção,
sua desconstrução

antes que se queixe ou interrogue, explico
não é a forma nem o conteúdo do que lemos
o que está em cogitação:
é só a coisa em si, nada mais, nada menos

Ana Guimarães

Esse texto acaba de ser publicado no Portal Cronópios:
http://www.cronopios.com.br/site/default.asp


domingo, 21 de março de 2010

BISPO COM QUIXOTE



A derrota do ser-no-mundo aos olhos de uns pode ser a vitória interior, ainda que travestida de desespero e dor. Liberdade que roça a loucura. Claro e escuro coabitando na mesma dimensão. A perseguição do enigma no lugar primeiro. O real arrancado todo dia a fórceps. O avesso do avesso do avesso. A confiança no paradoxo da duração do efêmero: quanto mais escapa, mais dele se tem certeza. É justo na escuridão que surge a luz. Quanto mais turvo, mais chance de verdadeiro.

Assim foi com Arthur Bispo do Rosário, alguém que mais do que na psicose jogado foi no abismo do espaço asilar, só restando a expressão pré-verbal através da linguagem das formas, das cores, das texturas. Sem mediação da letra, ou melhor dizendo, inscrevendo-se ele próprio como (música e) letra de seu auto-processo criativo. Fez arte com o tremor do pensamento. Criando, ele se produziu. De fantasmas que habitavam os porões da mente, como imagens que surgem de sombras na parede. Aí restava a possibilidade de sua ressurreição como sujeito, imprimindo seu traço, sua marca, através de bordados feitos com linhas esfiapadas do uniforme da instituição e de objetos de uso cotidiano alçados a categoria de instrumentos.

Diz-se que toda obra de arte resguarda um nonsense, bordando em suas bordas, margens, litorais a instauração da verdade pela eclosão do ente desvelado, o além do saber, o que transcende e aponta para o indizível, para o impossível, para o limite. Nesse caso, literalmente. “Como é que eu devo fazer um muro nos fundos da minha casa?” estava escrito ao lado de expressivo monte de cacos de vidro em cima de um muro. Seria suplência à falta da barreira primordial, a castração? É a óbvia associação, mas só uma hipótese, nada de analisá-lo via seus trabalhos. The meaning of the meaning tão procurado nos escapa quando se fala de arte. Ela já é o decodificar – mesmo cifrado – do saber inconsciente que a constitui. Resto de um despertar (mesmo que incipiente aqui). Tentativa de elaboração de novo enunciado. Percurso em torno de um lugar cavado para fora da simbolização.

Talvez ele tenha falhado – embora com brilhantismo tentado – em dar sentido (senso), já que ficou no censo, no cálculo, contando, “fazendo o inventário do mundo antes de se apresentar a Deus”, como evidenciam muitos dos objetos seriados manufaturados . Sua obra, de reconhecimento internacional, aponta para uma travessia, porém não completada. Cabe a quem a vê escutá-la, ouvir esse silêncio e o grito que ela promove.



E Quixote com isso? A obra de Cervantes se funda sobre o poder revolucionário do livro, da leitura, da literatura. Da litura, essa rasura feita nas palavras para descaracterizá-las, deformá-las, deixá-las livres para que o sentido dê quem as lê. Fracassa a leitura enquanto compreensão, só fica a ranhura sem sentido, como Joyce, que Lacan dizia para ser lido e não entendido. Menos consenso, menos verdades, logo, mais verdade. Enigmático, mas revelador. Revela-a-dor. The viewers are those who make the painting (Duchamp). O artista desfaz o sentido ou finge desfazê-lo para que o público o reconstrua a seu modo particular, único, diferenciado – daí se dizer que a obra de arte “funciona como analista”.

O fidalgo Quixote, leitor inveterado e identificado com os heróis dos romances que lia, parte despreparado para a batalha, da ficção para a realidade. Quando se dá mal, amigos Fahrenheit bem intencionados queimam seus livros para poupá-lo de adversidades (e aventuras!) futuras, culpando-os por seu excesso de imaginação. No entanto, em vão: ele já tinha sido inoculado por esse vírus (como se o homem precisasse disso ou daquilo para voar, para guerrear! Aliás, Navios de Guerra é o nome de outra produção de Bispo, feita de madeira, plástico, tecido e linha. E pulsões).

Quixote encarna o herói que crê nas pessoas a despeito de zombarias, traições, decepções, golpes sofridos. Estaria aí sua loucura?





Ana Guimarães

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

BUENOS AIRES



“La ciudad está en mí como un poema/ que aún no he logrado detener en palabras” (Borges 1923)

A mais européia das cidades da América Latina, a Paris sul-americana sempre me instigou pelo que ouvi falar da elegância discreta não só de suas meninas como de todos os seus cidadãos. Já a conhecia através de fatos políticos (a ascensão de Perón, a chegada ao poder, após a sua morte, da vice, Isabelita (sua segunda mulher), o sangrento golpe militar de 76 e a eleição de Menen, por voto direto do povo, em 89), através das letras de expoentes como Borges (escritor, poeta, tradutor, crítico e ensaísta, habitual frequentador da legendária Livraria Ateneo), Cortazar (natural de Bruxelas, mas desde os quatro anos morador e amante da cidade, autor de Jogo da Amarelinha, Bestiário, Final de Jogo) e Sabato (de O Escritor e seus fantasmas, meu livro de cabeceira, ativo combatente da ditadura no país), e através também, inútil negar, embora não aprecie o gênero, do tango de Carlos Gardel, repaginado por Astor Piazzolla (ainda assim considero imperdível uma ida ao Viejo Almacén para assistir a um show do ritmo cadenciado que eletriza multidões).
Estive em B.A. por duas vezes. Na primeira, de passagem para Bariloche, cumpri à risca os roteiros dos guias turísticos. Na segunda, fui a mais perfeita tradução do flanêur: por quinze dias, sozinha, refém do acaso, zanzei de lá pra cá, de manhã à noite, aproveitando cada instante imortal posto que só chama. Perdi-me para me reencontrar, mas nunca me achava como antes, sempre diferente, reinventada. Descobri na metrópole (e em mim) tesouros que não constam de nenhum circuito-padrão. Fartei-me de uma interessante e desconhecida sensação de eternidade. Conheci curvas, arestas, dobras e brilhos do lugar. Tanto que quase me tornei porteña (o que significa portuária ou a que vive junto ao porto). O tempo, que tudo apaga e faz cinza do mais rubro, aqui não foi bem sucedido: passados vários anos do fim desses volteios desisto de pintar a plenitude das cenas porque sei da fenda que existe entre a linguagem e o ser, contudo tento desdobrar em palavras alguns dos principais reflexos e imagens que retive, o que a emoção mais murmurou - ainda hoje ouço aquele grito.
Revi com vagar a Plaza de Mayo (palco de acontecimentos cívicos significativos da história da Argentina, a exemplo do famoso encontro das madres de Mayo, mães de desaparecidos durante os anos de chumbo), a Casa Rosada (sede do Governo Federal), a Catedral Metropolitana (onde está o túmulo do General San Martin, herói nacional), o Teatro Colon (muitas celebridades ali se apresentaram: Caruso, Strauss, Stravinsky, Maria Calas, Nureyev), a 9 de Julho (uma das avenidas mais largas do mundo), o Obelisco (que – ao contrário do nosso de Ipanema, no Rio, erguido pelo ex-prefeito César Maia e já derrubado – após intensa polêmica, acabou se integrando à paisagem de B.A.), Manzana de las Luzes (belo conjunto arquitetônico tombado pelo patrimônio), Calle Florida (exclusiva para pedestres, farta em comércio de artigos de couro e lã, com o moderno shopping center Galerias Pacífico instalado num prédio onde funcionavam os escritórios da Ferrocarriles Argentinas. Uma coleção de afrescos e os vitrais da abóbada do teto executados por brilhantes artistas plásticos fazem com que, por incrível que pareça, comprar seja o que menos importa, com uma exceção: a loja Bonnie Life, de artesanato, voltada para a defesa da natureza: todos os produtos são ecológicos. Confira).
Voltei a La Boca, na margem esquerda da desembocadura do Canal do Riachuelo, colorido recanto que abrigou os imigrantes genoveses. De novo sorri diante de Caminito. A curiosidade são as casas (construídas sobre estacas, como proteção contra a maré alta) feitas com folhas de zinco porque essa era a matéria-prima utilizada nas embarcações que aí aportavam, pintadas de cores fortes com sobras de tintas que os moradores conseguiam junto aos navios.
Chegando à sofisticada Recoleta, curti a sombra do Gran Gomeiro, a seringueira árvore-símbolo do bairro. Depois visitei o Cementério, rico em frondosas araucárias, cheio de estátuas, monumentos, mausoléus, verdadeiras obras de arte, como o sepulcro de Evita Perón, a ex-primeira dama. Saí para conhecer a Basílica de Nuestra Senõra Del Pilar, de 1732, destinada às orações dos padres franciscanos recolhidos (recolletos), cujo Altar Mayor é o destaque: um trabalho em prata realizado por indígenas do Peru. Almocei em um dos notáveis restaurantes do Paseo Del Pilar, a galeria ao lado do Centro Cultural. Para quem se interessa pelo assunto, o B.A. Design Recoleta vale uma visita seguida de comprinha, nem que seja uma lembrança original. But, se quiser e puder gastar muito, vá ao Pátio Bulrich, templo do alto consumo, em uma antiga construção onde aconteciam leilões de gado, fortemente marcada pelo desenho inglês. A vitrine do Valenti especialidades (queijos, salames, azeites) é de cair o queixo.
La Plaza Shopping Center é mais um centro de lazer, com três áreas que homenageiam os três Pablos: Picasso, Neruda e Casals. Todavia, é domingo, dia de Feria de San Telmo, e é pra lá que eu rumo. Uma divertida feira de antiguidades ou quinquilharias, depende do ponto de vista, cheia de artistas anônimos, “estátuas vivas”, casais dançando (e ensinando) tango, tocadores de bandoneon (que som pungente! Sabe a música Pelos Ares, da Adriana Calcanhoto?) que de Mercedes Soza e Violeta Parra logo passam para Aquarela do Brasil ou Cidade Maravilhosa quando percebem a chegada de brasileiros “no pedaço”. Pega de surpresa, longe de casa, prenhe de saudade, corpo e alma são transpassados num só golpe (baixo)!
No Jardim Japonês, em Palermo (onde também está localizado o Parque 3 de Febrero, o grande pulmão verde da cidade), deixei-me ficar no silêncio da doce fluidez das horas, o que me pareceu ser, no momento, o mais perfeito enlace entre céu e terra. Enquanto o sol caía por entre as folhas, apreciava os bonsais, e, salpicada de gotas dos bailados das carpas em torno de migalhas de pão que os visitantes vinham lhes atirar, encharcava-me de paz.
Por fim, os Armazéns de Puerto Madero, resultado do maior projeto de revitalização da zona do cais (marina, dois barcos-museu, universidade, igreja, cinemas e inúmeros restaurantes), perfeito para um passeio pelo calçadão entre os prédios e o dique. Depois de muito caminhar, faminta, afoguei-me na mais feroz alegria dos sentidos, guiada apenas por desejos, aromas e sabores. O Cabana Las Lilas, que recebeu estadistas como Clinton e Fernando Henrique Cardoso, foi o escolhido. Se pedir tapa de quadril (picanha) com papas (batatas) fritas souflée, um clássico, não tem erro. Sobremesa: panqueca de dulce de leche, o melhor do mundo, vamos combinar. La Caballeriza foi outra boa escolha, quando lá voltei. A decoração lembra um haras, todo dividido em “baias” e os garçons vestidos no estilo. O cardápio, como sempre, voltado para as carnes, não invente. Bife de chorizo (nosso contra-filé) ou lomo (filé mignon) são uma excelente pedida.
A vocação gastronômica da cidade é um fato. Inúmeras são as opções, para todos os gostos e bolsos. Indico: Clark’s (frutos do mar ou o filé da casa, envolto em massa folhada com panceta e cogumelos). Prosciutto la Parrilla, localizado num prédio histórico de 1890, com um eficiente sistema de porta de entrada dupla para controle do frio externo, é outro que recomendo (jamon crudo (presunto cru) é a especialidade, servido de várias maneiras e acompanhado de chope, para variar dos vinhos até então consumidos). Las Nazarenas, tradicional assador criollo (churrascaria) também oferece maravilhosas carnes no típico fogo de chão. Muito aconchegante. Um ótimo, com menu a preço fixo no almoço, é La Casa de Esteban de Luca. O mais econômico, nem por isso menos agradável: uma simpática cantina chamada Broccolino, neologismo com o qual os donos, italianos, brindavam o Brooklin, em Nova York, onde estavam seus parentes que foram “fazer” a América.
E, se quiser um prato rápido, um lanche, uma comidinha leve, sem perda de qualidade, há cafés, confeitarias e casas de chá em profusão. Ressalto alguns: Café Tortoni, o mais antigo, fundado em 1858, muito querido dos intelectuais, artistas e jornalistas da época. Florida Garden (prove o sanduíche de pan de miga (pão de forma sem casca)). Le Caravelle (em pé, no balcão). Café de la Paix (lotado de americanos e europeus, nos fins de semana). Confiteria Jockey Club (peça uma platina de massas (bandeja de doces, deliciosos)). Delicity-Sweet House (tortas, medialunas (croissants) e um saboroso almendrado (sorvete de amêndoas). E o Freddo (uma cadeia de sorvetes artesanais, com mais de cinqüenta sabores. Tem filiais e entrega a domicílio). Falei dos alfajorres? (Finos discos de massa recheados com “aquele” doce de leite e cobertos de chocolate). Só aceite o Havanna, fabricado em Mar Del Plata. Vale o preço.
Mas não me (nem te) engano: o vivido é uma pluma que o vento vai levando pelo ar, e a essência, se é que ela existe, pertence ao invisível. Desfolhe meu real e alucine/concretize seus próprios sonhos. Siga sua caravana. Viaje, se preciso for, sem sair do lugar: pode ser ainda melhor.

Ana Guimarães

sábado, 20 de fevereiro de 2010

FRAGMENTOS DE UM ENIGMA

FRAGMENTOS DE UM ENIGMA

Debruço-me sobre poemas de Fabrício Corsaletti (o livro é Esquimó), na esperança de tomar distância do real e tentar manter o equilíbrio. Literalmente, acordei com labirintite.
Mas acontece o contrário, o que leio me remete de volta à questão pessoal. A poesia é como óculos: quando você os coloca, não vê os óculos, vê as coisas com mais clareza. A poesia é essa lente que faz com que se perceba tudo com mais nitidez.
Retorno aos pensamentos sobre a minha identidade. Ana Emilia Rebelo é meu nome de batismo, não esse com o qual todos passaram a me conhecer. Mas Ana Guimarães é meu verdadeiro nome, construído por mim, letra por letra. As duas afirmações guardam parte da verdade, assim é a realidade.
Mesmo acometida de desconfortáveis vertigens, continuo a ler. “Não quero voltar para casa/no seu abraço/não busco o que perdi.../...Você é vento quente/que me acompanha/o enigma que não precisa ser decifrado.../...De você eu quero apenas/um filhote de lobo/um filhote de lobo/para morder minha mão direita”.
Enigmas mordem a gente, despertam, trituram. E fazem sangrar. Na mão direita, a da razão, quando não se consegue entender. A esquerda, a da emoção, continua intacta porque partida desde sempre, como a castração na mulher.
Leio uma mensagem recém-chegada. "Grato pelo seu novo texto, Ana. Você me instiga, motiva". Só Ana, talvez essa seja mais eu.
Se transparente, veriam que além de escudo para a família, de escuta para as pessoas, tenho um lado sensível que aflora quando me deparo com mentiras e dissimulações. Ando tonta pelo vento que, para simplificar, chamamos vida, e suas incongruências.
Everything is broken, diz o poeta e assino embaixo, com qualquer um dos meus nomes. Novamente ele me retrata. “Minha voz/está quebrada/meu pensamento/está quebrado/(...)/tudo está quebrado/... Há uma pessoa no mundo/que não está quebrada/e eu estou ao seu lado/como se não estivesse quebrado”. Só o outro cola, fornece a ilusão de completude. Mas mesmo isso não estanca a sangria, sabemos.
Existem coisas a respeito das quais devemos nos calar, não procurar esclarecer, é inútil.“Nunca falei/nunca vou falar”. Falar afeta o frágil equilíbrio do mundo. Não falar afeta o meu.
Mais um verso que me traduz: “Não vou/me perdoar/pelo que fiz/Não vou/me arrepender/do que fiz”.
Das palavras não conseguimos escapar. Elas expõem a cisão que nos constitui. Escrever (poesia ou prosa, tanto faz) só roça o enigma, não pretende solucioná-lo. Não é inútil, embora também não sirva para nada (seria um sintoma do indizível?). Melhor não tocar no assunto. É mais prudente ficar em silêncio.

Ana Guimarães

domingo, 31 de janeiro de 2010

CAMINHANDO POR MADRI



CAMINHANDO POR MADRI

Que é loucura: ser cavaleiro andante
ou segui-lo como escudeiro?
De nós dois, quem o louco verdadeiro?
O que, acordado, sonha doidamente?
O que, mesmo vendado,
vê o real e segue o sonho
de um doido pelas bruxas embruxado?
Eis-me, talvez, o único maluco, 
e me sabendo tal, sem grão de siso, 
sou — que doideira — um louco de juízo.
(Drummond)

Cansada, confesso que pousei no Aeroporto de Barajas desanimada, quase triste, com a sensação de que a fogueira estava prestes a se apagar, que a viagem agonizava. Primeiro, porque era um dado de realidade, afinal seria a última escala antes da volta ao Brasil. Depois, porque após o ápice que fora Barcelona, dificilmente alguma outra a superaria. Mas o jogo começou a virar na noite em que cheguei. O voo atrasou e fui jantar perto de onde estava hospedada, na Gran Via, num dos muitos restaurantes abertos  de madrugada, a metrópole tem fama de boêmia, nada fecha, nunca. Além do gentil atendimento, farta e deliciosa refeição por um preço ínfimo, comparado ao dos bacalhaus e jamóns que vinha, até então, degustando. Invadiu-me tanta alegria pelas papilas gustativas que fui dormir esperançosa de que o sonho continuaria enquanto a areia escorresse pela ampulheta.

Entrando no clima, tomei café com pan com tomaca (pão com tomate), e saí, como os mouros, disposta a conquistar Madri, só que caminhando e cantando, como Vandré. 
Parti para a Plaza Cibeles, no cruzamento entre Paseo Del Prado e a Calle de Alcalá, com sua famosa fonte, um lindo monumento.
Passei pela Plaza de Toros de Las Ventas, a das touradas, apenas por curiosidade, jamais assistiria espetáculo tão sangrento.
Na Plaza de Espanha, fotografei ao lado do busto de Cervantes e das estátuas de D. Quixote e Sancho Pança, seu fiel escudeiro. 
De lá rumei para Plaza Mayor, a mais bela de todas, incrível que o lugar tenha sido palco de julgamentos e execuções da Inquisição. 
Debaixo de suas arcadas, para abrir o apetite, provei o xerez Tio Pepe e belisquei tapas, uma espécie de petiscos salgados, embora os espanhóis odeiem esse reducionismo e adorem contar aquela velha história sobre a origem deles: como “tampas” para impedir que as moscas caíssem nos copos de bebida.
Andei até Puerta Del Sol, marco zero das estradas nacionais que saem da cidade, e vi o símbolo de Madri, a famosa estátua de um urso apoiando-se numa árvore chamada Madroño.
Pausa para almoço no Botin, o restaurante mais antigo do planeta, segundo o Guinness, de 1725, freqüentado não só por turistas como por habitantes locais, na Calle dos Cuchilleros, conhecido polo gastronômico. 
Talvez pela baixa temperatura, apesar do vinho consumido tive fôlego para ir direto ao Centro de Arte Reina Sofia, com seus panorâmicos elevadores de vidro, admirar o impactante Guernica, de Picasso, entre outras obras. 
Voltei para jantar no recomendado El Cuchi, cozinha mexicana, ambiente acolhedor e boa música.

Acordei disposta a dedicar manhã e tarde somente para apreciar os trabalhos expostos no magnífico Museu do Prado, um dos melhores acervos do mundo. 

No outro dia foi a vez do Museu Thyssen Bornemisza, que expõe a evolução da arte espanhola do século XIII ao XX. Mais Velásquez, Goya, Picasso, Dali.

O sol já aparecendo de novo, apesar do frio, e a marcha continua. Pernas, pra que te quero? Força, para chegar ao Templo de Debod, construído no século IV a.C., salvo de ser inundado por uma represa e dado de presente a Espanha. Fica nuns jardins no alto da cidade, valeu a pena a procura, pois além da sua beleza, nos presenteia com uma privilegiada vista.
Monastério de San Lorenzo de Escorial, na verdade um complexo que abriga mosteiro, basílica, biblioteca e dois panteões.
Valle de Los Caídos, monumento aos mortos da guerra civil espanhola, imensa capela escavada na rocha bruta.
Morta de fome, saí e fui direto almoçar um divino cozido madrileno no La Bola. 
A visita guiada, previamente marcada, ao Mosteiro de las Descalças Reales, repleto de tapeçarias, esculturas e pinturas de Rubens e Ticiano, doadas pelos pais das noviças, foi especial e diferente: somos acompanhados por um segurança para que ninguém se desvie e adentre algum recanto proibido, onde se encontram as religiosas reclusas. 
As Igrejas de San Isidro e N.S. de Almudeña, a padroeira, também encantam. 
Quando terminei, a noite há muito já nos enlaçava. Entrei, atraída pela placa, no Museo Del Jamón, que dispõe de enorme variedade da iguaria mais típica do país. Degustação terminada, concluí que meu presunto preferido é o Pata Nera (Pata Negra), feito da carne de um tipo de porco criado sem nenhum confinamento, alimentando-se apenas de uma espécie de castanha de coloração amarronzada, o que mancha suas patas, daí o nome.

Por fim, embarquei numa excursão de longa jornada para a qual fora pedido que se chegasse cedo no ponto marcado, com calçados confortáveis para pisar em ruas de paralelepípedos. Fomos levados a Toledoa capital da Espanha medieval até o inicio do século XVI, a cidade das três culturas (cristãos, judeus e árabes), dentro de antigas muralhas, preservada, tombada pelo patrimônio, berço de El Greco não de nascimento, mas por adoção, para aí desenvolver a maior parte de sua carreira. Ali nos extasiamos com várias edificações. 
Alcazar, que era um palácio fortificado. 
Igreja de São Tomé, bem simples, o destaque é que ela abriga “O enterro do Conde de Orgaz”, obra prima do mestre. 
Sinagoga de Santa Maria La Blanca, bem eclética em termos arquitetônicos, uma salada de estilos, em bom português, mais parece uma mesquita. 
E a Catedral, cujo altar ostenta magnífica escultura de Narciso Tomé, em mármore, jaspe e bronze, chamada Transparente devido à iluminação que recebe de uma clarabóia. 
Visitamos ainda uma autêntica oficina de artesãos em pleno funcionamento, lidando com ouro damasquinado, técnica secular onde se incrustam fios de ouro nos desenhos das peças. 
Um passeio encantador, mas exaustivo, o que me fez desabar na cama do hotel por oito horas seguidas. 

Desperto feliz, saciada de boas comidas e belas artes. Malas prontas, enquanto aguardo o horário da volta para a casa, vou domingar um pouco no Parque Del Retiro, enorme área verde no centro da cidade, com alamedas repletas de mímicos, músicos e acrobatas, barcos no lago e cafés ao ar livre. Uma senhora despedida. Agora o corpo quer relaxar apreciando o vaivém das pessoas, só a alma caminha. 

Ana Guimarães

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

BARCELONA, LUMINOSA CIDADE



A linha reta é do homem, a curva pertence a Deus. (Gaudi)


Barcelona, a primeira impressão, aquele instante, permanece a cantar até hoje em minha alma. Revejo a gélida noite de seis de janeiro de 2002. O coração logo aquecido, seu ritmo acertado ao ritmo da festa de Reis que incendiava as ruas da cidade. Como separar a dançarina da dança?, perguntava-se Yeats. Só sei que rodopiei enquanto lá estive. E, sempre que a revisito na memória, bailo de novo.
A privilegiada localização do hotel em que fiquei, praça Catalunya, foi vital para a mobilidade e conseqüente melhor e mais rápido conhecimento de tudo, no tempo de viagem de que dispunha. Daí partem os ônibus turísticos que levam de uma atração a outra. Aí se encontra El Corte Inglês, loja de departamentos com ampla oferta de mercadorias de qualidade a preços razoáveis, e, sorte minha,  ainda estava em rebaja (liquidação). Aí também começa a famosa La Rambla, com um grande e constante fluxo de pessoas, onde se pode tanto visitar o mercado La Boqueria e se abastecer com pães, queijos, vinhos, frutas secas e o maravilhoso jamon (presunto cru) quanto assistir a um espetáculo no Gran Teatre Del Liceu (Montserrat Caballé tinha estreado na véspera, mas os ingressos para a temporada já estavam esgotados). Ela termina em um ponto igualmente importante, o monumento a Colombo, uma enorme estátua no meio da praça do Portal de la Pau, marco que comemora a vitoriosa volta do navegador após sua primeira expedição ao Novo Mundo. Bem perto, no Port Olimpic, é possível sair ao mar em barcos chamados Golondrinas, quer dizer, andorinhas, que, aliás, nunca sós, sempre em bando, dando vôos rasantes sobre as cabeças dos turistas, fazem verão em pleno inverno.
Passeig de Gràcia, paralela a Rambla, entre outros motivos, merece uma caminhada. Deixei-me embriagar pelas vitrines de joalherias e sofisticadas grifes, e ainda consegui comprar na loja Vinçon, de design contemporâneo, uma caneta finíssima, nos dois sentidos, para Nanda, minha filha designer. Além disso, depois de tanta andança, descobri a oficina manual de alpargatas catalãs típicas, de modelos, cores e tamanhos a escolher.
A Avenida Rainha Maria Cristina, ladeada por campanários inspirados nos da praça de São Marcos, em Veneza, tem escadas rolantes a céu aberto e uma enorme quantidade de bancos para a siesta, a soneca obrigatória depois do almoço. Se em Roma, como os romanos, relaxei e cedi ao sono, até porque quase tudo fecha nesse horário.
A gastronomia seria um capítulo à parte, contudo vou resumi-lo,  come-se bem em qual-quer lugar, dos mais dispendiosos aos mais econômicos, tanto a comida típica (paella, por exemplo, feita de arroz com açafrão e frutos do mar) como a internacional: considero que tomei a sopa de cebola mais deliciosa do mundo, talvez porque tenha me aquecido do frio de cinco graus assim que cheguei, no restaurante La Poma, simples e lotado.
Berço de muitos gênios da arte, Barcelona tem, além do Museu Nacional D’Art, atrações imperdíveis. Comecei pela Catedral gótica, com vinte e oito capelas laterais, emudeci diante de tanta beleza. Depois fui a Fundação Miró, no Parc de Montjüic, que abriga os principais trabalhos do pintor surrealista, embora eu tenha preferido o Museu Picasso, ele próprio, as três casas que o compõe, uma obra de arte. E ainda fui presenteada com uma exposição extra, Picasso erótico.
Todavia, rendo-me à unanimidade, que nem sempre é burra, Gaudi é a estrela do pedaço. Duas ou três coisas que sei dele: professava uma profunda fé religiosa e difundia com fervor a linguagem e a cultura catalana, quando isso era proibido, conta-se que chegou a se recusar a falar espanhol com um policial, o que lhe valeu duas noites na cadeia. Morreu atropelado. Não totalmente, como atesta a arquitetura que pintou em aquarela nada formal. 
Para começar, fui conhecer a Casa Vicens, sua primeira grande encomenda. Surpreendente. Depois, o edifício de apartamentos Casa Milà, mais conhecida como La Pedrera, com a fachada curva, ondulada, e suas conhecidas chaminés. E ainda a Casa Batlló, uma marca do seu estilo, particular, único, com muitos elementos diferentes, mistura de vitrais, madeira, cerâmica e ferro forjado, os três últimos considerados modernos, na época. Visitei com calma o Parc Güell, tombado como Patrimônio da Humanidade pela Unesco, com uma imensa salamandra revestida de cacos de azulejos a recepcionar todos os que sobem a escadaria da entrada. Por fim, entreguei-me à visão da grandiosidade da Basílica da Sagrada Família, templo idealizado por ele, ao qual dedicou quarenta e três anos da vida, e apenas conseguiu ver terminadas algumas partes, entre elas a monumental fachada “do Nascimento” e uma das dezoito torres projetadas, com um elevador que leva o visitante ao alto, onde o olhar parece se estender além do horizonte. Considerada, se/quando concluída, a maior da Europa. Saí tocada pela grandeza daquele verdadeiro work in progress a me lembrar quão inacabados somos, em eterna construção.


Não creio em ti, Senhor, mas tenho tanta necessidade de crer em ti, que muitas vezes falo e te imploro como se existisses.
Tenho tanta necessidade de ti, Senhor, e de que sejas, que chego a crer em ti — e penso crer em ti quando não creio em ninguém.

Mas depois desperto, ou me parece que desperto, e me envergonho de minha fraqueza e te detesto. E falo contra ti que não és ninguém. E falo mal de ti como se fosses alguém.

Quando, Senhor, estou desperto e quando adormecido?

Quando estou mais desperto e quando mais adormecido? Não será tudo um sonho e eu que, desperto e adormecido, sonho a vida? Despertarei algum día deste duplo sonho e viverei, longe daqui, a verdadeira vida, onde sonho e vigília sejam uma mentira?

Não creio em ti, Senhor, mas se és, não posso dar-te o melhor de mim a não ser assim: senão dizendo-te que não creio em ti. Que forma de amor tão estranha e tão dura! Que mal me faz não poder dizer-te: creio.

Não creio em ti, Senhor, mas se és, tira-me deste engano de uma vez.
Faz-me ver bem a tua cara! Não me queiras mal pelo meu amor
mesquinho. Faz com que, sem fim e sem palavras, todo o meu ser possa dizer-te: És.

(Canto espiritual, poema de José Palau, poeta catalão, traduzido por Augusto de Campos)



Ana Guimarães

domingo, 10 de janeiro de 2010

E QUERO FRÁTRIA



E QUERO FRÁTRIA

Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!

Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.
(Fernando Pessoa)


Havia lido que Lisboa, apesar de localizada no Atlântico, tem um quê de mediterrâneo. Talvez por seus telhados laranja escuro, casas em tons pastéis, calçadas lindamente decoradas, sempre sendo restauradas, azulejos azuis por toda a parte (D. Manuel I, em visita à Espanha, teria se encantado com os interiores mouriscos azulejados). Acordei num sábado de manhã cedo, no Aeroporto Portela, louca de disposição para conhecê-la. A sensação, após dez horas de vôo, é inusitada: fala-se a mesma língua, o que embora nos conforte e tranqüilize, causa um certo estranhamento. Uma flor de ambigüidade, estamos e não estamos no estrangeiro. Agora, fecho os olhos para melhor resgatar da memória tudo que possa servir de bússola para futuros viajantes.
O hotel Lisboa, bem localizado, junto à Avenida Liberdade, que me abrigou por apenas um dia, pois antecipara a ida em cima da hora, não é da mesma categoria do outro, onde me hospedei o resto da minha estadia, pertinho do praça do Rossio, o coração da cidade, contudo o atendimento da recepção foi cordial, rápido e eficiente: enquanto fazia o check in já me engajaram no primeiro tour aos arredores, deixando para depois o reconhecimento dos brilhos de um mito que se revelou realidade.
Comecei por Sintra, apelidada por Byron de O Glorioso Éden, antigo refúgio dos monarcas. Fez-me lembrar Petrópolis em seus áureos tempos. O lugar oferece aos visitantes, além da beleza natural (botânicos teriam enlouquecido com as espécies de plantas raras que ali florescem) grandiosas edificações como o Palácio Real, com duas enormes chaminés na cozinha, avistadas de longe, e o Palácio da Pena, erguido sobre as ruínas de um mosteiro do século XVI. Café e doces deliciosos amenizam o frio de quatro graus (é dezembro, pleno inverno). De lá seguimos para Cabo da Roca (o ponto mais oeste da terra), praia do Guincho (cheia de destemidos surfistas em suas águas geladas), Cascais e Estoril, paraíso dos aristocratas.
De volta do passeio, numa espécie de reconhecimento do terreno, jantamos no restaurante panorâmico do Hotel Mundial, com o magnífico e iluminado Castelo de São Jorge bem ao lado, quase a um esticar de braço. Fomos dormir com a sensação de que já estávamos em terras portuguesas há vários dias.
Aos primeiros raios solares, saímos para ver aquela que renasceu das cinzas por duas vezes. Seguíamos as trilhas sugeridas. Atravessar a Ponte 25 de abril, sobre o Rio Tejo (cantado em prosa e verso por Camões e Pessoa), a ponte pênsil mais comprida da Europa. Visitar o Mosteiro dos Jerônimos (uma homenagem às descobertas de Vasco da Gama, financiado pelo comércio das especiarias), o Museu dos Coches (instalado na antiga escola de equitação do Palácio de Belém), o monumento Padrão dos Descobrimentos e a Torre de Belém (construída como proteção contra piratas, a fortaleza que serviu de ponto de partida das caravelas). Subir e descer nas escadarias que constituem o labirinto de Alfama, antigo bairro árabe. Dar uma volta na Praça Marques do Pombal, o ministro que reconstruiu Lisboa após o terremoto de 1755. Passear nas ruas do Chiado, bairro criado após um incêndio em 1988.
Já o amplo Parque das Nações, feito para a Expo 98, revela a face moderna da cidade. Nele, muitas são as atrações, porém notável é o Oceanário, magnífico aquário gigante com diferentes habitats, vale a visita com bastante tempo disponível. No shopping Vasco da Gama, ali pertinho, uma surpresa, tolo afago de ego: a loja Ana Guimarães, onde adquiri uma almofada nova para pescoço, a fim de tornar mais confortável o vôo de volta ao Brasil. Depois fui ao shopping Colombo, bem maior e mais sofisticado, e aos Armazéns do Chiado (numa fachada antiga recuperada, um espaço interno que abriga seis pisos, boa opção para compras e refeições ligeiras). À noite, tendo feito uma ‘marcação’ (leia-se reserva) fomos ao aconchegante Parreirinha do Alfama ouvir fado (a palavra vem do latim fatum, ou seja, destino. Uma explicação para a sua origem remonta aos cânticos dos Mouros, que permaneceram no bairro da Mouraria, na cidade de Lisboa, após a reconquista cristã).
Dia 31 de dezembro fizemos uma excursão a Óbidos, pequena vila a 94 kms de Lisboa, rodeada de muralhas de pedras do século XIV, onde se toma a famosa “ginjinha com” (licor de cerejas com elas dentro da garrafa, daí o nome) e se come o melhor pastel de Belém dos muitos que provamos. De lá fomos a Alcobaça. Aí fica a maior igreja do país, o Mosteiro de Santa Maria, onde estão os túmulos de Pedro e Inês de Castro, casal que protagonizou uma das mais trágicas histórias de amor de Portugal. Seguimos para Nazaré, vila pesqueira onde degustamos um peixe fresquinho em mesa comunitária super divertida. Falava-se um pouco de italiano (jovens em lua de mel), um pouco de francês (casal idoso), um pouco de espanhol (cubano que mora em Miami), e, felizmente, o inglês, que todos ‘arranhavam’e propiciou que a comunicação fluísse. Em seguida Batalha, e por fim, Fátima, centro mundial de peregrinação desde que três pequenos pastores disseram ter visto a aparição da Virgem Maria e onde é impossível não se emocionar, orar e agradecer as bênçãos recebidas ao longo da vida.
Ceamos no restaurante do hotel e saímos antes da meia noite, levando champagne para a passagem do ano na Praça do Comércio. O que vimos foi queima de fogos de artifício, show com cantores locais, projeções a laser, espetáculo que, fora o visual da orla da Princesinha do Mar, nada ficou a dever ao nosso de Copacabana (devidamente registrado em vídeo, para quem quiser conferir).
Dia 1º de janeiro acordamos tarde, no maior silêncio, tentando espantar a preguiça. Continuamos a percorrer o roteiro sugerido. Castelo de São Jorge (erguido no topo de uma colina), Elevador Santa Justa (outra vista também deslumbrante), o tradicional café A Brasileira, e, após a clássica foto com a estátua de Fernando Pessoa, almoçamos no simples e fantástico João do Grão, mais conhecido dos lisboetas do que por turistas, dica de uma amiga da terrinha. Depois, uma boa passeada no Museu da Fundação Calouste Gulbenkian. As Igrejas da Sé (Catedral), a mais antiga, e a de Santo Antônio, o santo casamenteiro, foram outros tesouros arquitetônicos apreciados. E ainda o Palácio de Queluz, o Versailles de Portugal, a apenas quinze quilômetros de Lisboa.

Porque te amo tanto, pátria minha, eu que não tenho
Pátria, eu semente que nasci do vento
Eu que não vou e não venho, eu que permaneço
Em contato com a dor do tempo, eu elemento
De ligação entre a ação e o pensamento
Eu fio invisível no espaço de todo adeus
Eu, o sem Deus!
(Vinicius de Moraes)


Então alugamos um carro para ir a Coimbra, capital do país entre 1139 e 1256. Depois de nos instalarmos num antigo hotel às margens plácidas do rio Mondego, partimos para a Universidade, que data de 1290. Sua torre é o cartão-postal da cidade. Visitamos a Biblioteca Joanina (obra engendrada por ordem do Rei D. João V, três amplas salas decoradas com laca verde, vermelha e dourada) e a Capela de São Miguel, onde se destaca um imponente órgão barroco. Vimos a igreja chamada Sá Velha.
Nessa noite, jantamos debaixo de forte chuva, no restaurante do Hotel Quinta das Lágrimas, uma boa experiência gastronômica. Palco de encontros do romance interditado de Pedro (herdeiro do trono português e filho de D. Afonso IV) e Inês (filha de Pedro Fernandes e Castro, da Espanha), ocupa uma área de dezoito hectares, com piscinas, campos de golfe, área de lazer e salões de jogos. Há árvores com mais de duzentos anos. Reza a lenda que Pedro condenou à morte os assassinos de sua amada com requintes de crueldade e mandou desenterrá-la para ser coroada rainha, numa cerimônia de beija-mão ao cadáver imposta a toda a corte da época.
Vimos ainda a Igreja de Santa Clara, “a nova” e Portugal dos Pequeninos, onde estão reproduzidos em tamanho reduzido os mais famosos monumentos do país e de suas colônias.
Se quiser adquirir a fina porcelana Vista Alegre, a fábrica fica a 50 quilômetros de Coimbra, com visita guiada mostrando a produção até o produto final (para quem não conhece, de excelente qualidade).
E para os que se interessam por sítios arqueológicos, há um, Conimbriga, o mais bem preservado conjunto de vestígios romanos, com parte aberta ao público.

Gosto de sentir a minha língua roçar a língua de Luís de Camões...
A língua é minha pátria
E eu não tenho pátria, tenho mátria
E quero frátria
(Caetano Veloso)


Tornamos a pegar a estrada, agora com destino ao Hotel Mercure Batalha, na praça do mesmo nome, no coração do Porto, essa cidade cujo casario típico foi tombado como Patrimônio da Humanidade pela UNESCO. O que recomendo? Coma, pra variar, um bacalhau, no Tripeiro. Descubra o centro antigo por meio de caminhadas. Suba, se for capaz, os duzentos e tantos degraus da Torre dos Clérigos, curta a paisagem e se seu ouvido suportar, ouça, às doze e às dezoito horas, a tempestade musical do repicar de quarenta e nove sinos. Visite a Catedral da Sé, a Igreja de São Francisco, o prédio da Bolsa. Vá a Praça da Liberdade e admire a escultura de D. Pedro IV, de Portugal, o nosso Pedro I. Desfrute do comércio da Rua das Flores. Flane pela rua Santa Catarina e tenha sorte de encontrar o Lourenço, onde provará o autêntico queijo Serra da Estrela. Almoce na região das Antas, em Portogalia (de preferência, uma galinha à cabidela), e faça uma degustação de vinho (do Porto, of course), em Vila Nova de Gaia, onde estão situadas várias caves.
À noite, já cansados desse périplo, nos despedindo, fazendo pela primeira vez uma refeição no restaurante do hotel. Surpreendemo-nos com o requinte e o esmero no preparo, na apresentação dos pratos e com as incríveis sobremesas, até hoje me lembro de clarinhas de fão, um delicioso creme de gemas acompanhado de doce de abóbora.
De Mercedes novinho (o trivial, todos os táxis são assim) rumamos para o Aeroporto. Terminava aqui nossa bem-sucedida temporada lusitana.

Ana Guimarães